quinta-feira, 15 de setembro de 2016

É SOBRE BANHEIROS QUE TEMOS QUE FALAR?

Por Sara Antunes*
Uma menina entrou em contato comigo pelo Facebook, se apresentou como filha de uma conhecida, estudante de arquitetura. Sabia pela sua mãe que eu trabalhava com penitenciárias femininas e gostaria de saber mais sobre esse universo, uma vez que pretendia realizar um projeto de construção de uma penitenciária. Parecia especificamente interessada na quantidade de banheiros necessários para se planejar uma prisão. Perguntei-me do porquê de os banheiros despertarem tanto interesse. Seu primeiro questionamento não era sobre a quantidade de celas, sobre como lidar com a superlotação, sobre os espaços destinados ao banho de sol, se existiam solitárias, se havia oferta de trabalho ou atividades laborais, as diferenças estruturais entre regimes fechados e semiabertos. Não. Seu interesse ou, talvez, sua maior curiosidade era saber como eram os banheiros e quantos deveriam existir para suprir a demanda populacional da prisão.
Enfim, desconfortável e intrigada com seu questionamento, fiquei um tempo a pensar. Digo desconfortável não pelo banheiro, mas pelo motivo que a levou em primeiro lugar a me procurar. Ela estava interessada em saber como planejar uma prisão. O que a vivência em instituições prisionais me mostrara (e mostra aos que quiserem ver) é o quanto esse é um sistema falido, uma retroalimentação de erros. Longe de “reformar” indivíduos ou diminuir a criminalidade – supostamente seus propósitos fundacionais –, fabrica corpos e vidas violentas e violentadas. Produz delinquência na mesma velocidade em que produz vidas matáveis.
Para além disso, a própria definição do que é considerado crime, em que momento histórico e, especialmente, quem serão aqueles etiquetados enquanto “criminosos em potencial” é algo absolutamente contingente e historicamente comprometido com os interesses das elites econômicas. No caso brasileiro, sabe-se bem onde a vigilância e truculência policial recai – sobre a população preta e pobre das periferias. Etiquetados, são alvo e destino dos esforços repressivos da segurança pública. Por consequência, os mesmos que majoritariamente ocupam os sufocantes metros quadrados da prisão.
Dessa forma, ao refletir sobre o questionamento da menina, percebia que meu incômodo adivinha de um dilema ético: cooperar com ela ao responder sua pergunta fazia de mim cúmplice de esforços empenhados em perpetuar o sistema prisional, em dar seguimento a contínua (e eterna) reforma da prisão. Invariavelmente abolicionista, como podia eu auxiliar (ainda que consciente da pequenez dos seus efeitos, tendo em vista ser apenas um trabalho de final de curso) um movimento que caminhava no sentido exatamente oposto das convicções que levo comigo? Desse embate, que travava até então apenas em minha cabeça, resultaram alguns esboços de reposta a essa garota. Todos me pareciam absolutamente amedrontadores para alguém que só havia me perguntado quantos banheiros são necessários para se planejar uma prisão. Mas, então, ponderei: o plano de fundo sobre o qual se ampara essa pergunta, não é ele mesmo amedrontador?
Assim, continuei a pensar o porquê do seu específico interesse sobre os banheiros. Ao fazer o cálculo do que é necessário para se projetar uma prisão, a primeira coisa que essa pessoa, futura arquiteta, considerou essencial à vivência dentro de uma penitenciária eram os banheiros. Questão de higiene? Questão de salubridade? Questão de recursos, uma vez que banheiros e cozinhas são os cômodos mais custosos? Parecia-me isso, mas não era só isso. Ao menos não era isso que me incomodava. Sua preocupação era demasiado técnica, demasiado prática, demasiadamente formal. Não se tratava, no caso, de qualquer projeto de edifício, de uma estrutura padrão formada por blocos, tijolos, tinta, concreto, massa corrida. Tratava-se de uma estrutura formada por, além disso, grades, ferro, muros altos, cercas elétricas, cabines de vigilância, paredes cinzas. Não era sobre um ambiente arquitetado e construído para a circulação ou habitação de pessoas, pura e simplesmente. Tratava-se de um ambiente construído e desenhado para aprisionar pessoas, para puni-las, para cercear sua liberdade. Não. Ao perguntar sobre os banheiros, sua fala não evidenciava apenas uma preocupação técnica. Representava sua indiferença à vida que lá transcorreria para além de um banheiro funcional para atender necessidades fisiológicas.
O meu incômodo na fala da filha de minha conhecida emergia no momento em que evidenciava a percepção corrente de grande parte da população sobre a vida que se acredita existir nas penitenciárias por todo o país; na verdade, sobre a sua falta, ou, justamente, sua sobrevida. Em outras palavras, ao escolher se preocupar com banheiros, deixa-se, ou, ao menos coloca-se em segundo plano, a preocupação com salas, salões, corredores, pátios. Mostra-se secundária a preocupação com o fato de que na prisão as pessoas vivem, convivem, habitam e fazem morada – evidentemente contra sua vontade –, mas o fazem durante meses ou anos de suas vidas. Ao fato de que tal espaço não consiste apenas em um edifício projetado para atender às necessidades básicas de sobrevivência. Mas às necessidades de vida, especialmente as de convida.
Um projeto de prisão preocupado com a quantidade de banheiros está ocupado com questões técnicas, mas alheio às questões humanas. Alheio às implicações históricas e políticas desse lugar. Ou, simplesmente, indiferente.
Os problemas e relatos que me eram feitos durante as visitas em penitenciárias femininas não diziam respeito às condições do banheiro. Diziam sobre a comida estragada, sobre os espaços superlotados, sobre o calor, a falta de ventilação, a falta de materiais básicos (de higiene, vestimenta), a água morna (e não tratada) pra beber no dia quente, o banho gelado no dia frio. A falta de espaço. A falta – ou negligência – de assistência jurídica. De assistência médica. O tempo alargado. O tédio. As saudades.
Suas demandas eram maiores e mais vivas do que banheiros funcionais. O problema social que envolve a existência de presídios é imensamente maior do que proposições de novos ou a reforma dos que já existem. A fala dessa menina, a contrapelo de sua intenção, me mostrou que certamente devemos parar de pensar em banheiros. Devemos, sim, pensar no fim da prisão.

*Sara Antunes é integrante da Pastoral Carcerária e mestranda em Antropologia Social pela Unicamp.

Disponível em: http://carceraria.org.br/e-sobre-banheiros-que-temos-que-falar.html
 

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

22º GRITO DOS EXCLUÍDOS EM ARACAJU/SE

A pastoral Carcerária também esteve presente no Grito dos Excluídos, com o tema: "ESSE SISTEMA É INSUPORTÁVEL, EXCLUI, DEGRADA E MATA". Todos juntos numa só família para exigir os direitos necessários a Vida.